
Sabe
quando você encontra um livro que te faz pensar um pouquinho em algumas
situações bem específicas da sua vida? Conforme você vai lendo, vai lembrando
de uma coisa aqui, outra acolá e vai tentando finalmente entender aqueles
pensamentos da época. Foi mais ou menos isso que aconteceu enquanto eu fui
lendo O Que Me Faz Pular, de Naoki Higashida.
Começo pela cena na minha cabeça, para depois entrar no livro:
Cena 1: Manhã ensolarada, escola pública do Município do Rio de Janeiro, eu, como bolsista de iniciação à docência (<3 Pibid <3) – para quem não sabe, sou professor de língua portuguesa e revisor –, estava sentado no pátio da escola, esperando dar a hora de entrar em sala. Enquanto estava sentado naquele banquinho, olhava para as salas cheias de crianças fazendo de tudo que se possa fazer numa sala de aula. Porém, no corredor, e às vezes também no pátio, tinha um menino andando enquanto um professor, que parecia ser de música, o acompanhava com um violão na mão. Enquanto eu apenas observava, o inspetor, notando meu olhar, me fala que era o menino autista. Dizia que aquele era o estagiário do município que o acompanhava nas aulas.
Cena
2: Chego na universidade, encontro alguns colegas, e um deles me diz que
finalmente conseguiu um estágio remunerado. Vai trabalhar com crianças
especiais – a CRE sempre contrata graduandos de diversas licenciaturas para
atuarem com os estudantes especiais – e que estava em pânico. Só tivera uma
cadeira de educação especial, que no geral serviu para um panorama geral das
especificidades da categoria “estudante com necessidades especiais”. Enfim,
aquele estudante estava com medo de como seria o contato com o desconhecido,
com o diferente que não fazia parte do seu cotidiano.
Cena
3: Aula de linguística, professora falando sobre línguas, suas diferenças, os
possíveis olhares mais estruturais e tudo mais. Aula de Libras, professor
fantástico, diga-se de passagem, e a fala que reforçava que o surdo prefere ser
chamado de surdo, e não deficiente auditivo. Sua explicação, pelo que me lembro
e pelo que faz sentido para mim, se deu pelo surdo simplesmente ser uma pessoa
falante de uma outra língua, no caso específico do Brasil, Libras. Não há
diferença entre uma pessoa falante de inglês como primeira língua e um falante
de Libras como primeira língua, em relação a um brasileiro falante de português
como primeira língua. São apenas pessoas que falam línguas diferentes. Reforçar
uma ideia de deficiência, quando aquilo que os difere dos não surdos é,
principalmente, a língua, é o mesmo que os levar para uma categoria normalmente
excludente propositadamente.
Agora
que você leu as três cenas que vieram à minha cabeça quando li O Que me Faz
Pular, vou te contar um pouco por que isso aconteceu. O Que me Faz Pular é um
livro escrito por uma criança japonesa autista, no qual ela responde a
cinquenta e oito perguntas sobre seu modo de pensar, seus hábitos, possibilidades
e impossibilidades – no final do livro, ele também escreve um conto
maravilhoso.
O
livro me jogou no universo de uma criança autista e me fez relembrar e pensar
como me relaciono com elas, como as vejo, como estou no mundo junto delas. De
certo modo, o livro me passou muito a sensação de ser leitura recomendada para
pessoas que estão ou podem estar em contato com pessoas autista. Ou seja:
Para
todo mundo, porque pessoas autistas fazem parte do mundo, e você precisa saber
como respeitar suas diferenças, possibilidades e impossibilidades, como faz com
todos os seres não autistas!
Desculpem
o destaque, mas acho que nesse caso ele é necessário. Você pode estar pensando:
mas você falou lá daquelas três cenas, e aí? Não vai contar a relação com a
história?
Sim,
vou. A primeira cena, do menino ao lado do estagiário com violão, surgiu na
minha cabeça quando Naoki Higashida, autor do livro, relata sua dificuldade em
controlar certos instintos. Ele afirma que muitas vezes sua vontade de sair
andando é muito forte, quase incontrolável, e que isso precisa ser conhecido
por quem convive com ele. É uma particularidade dele, que ele busca controlar,
mas que às vezes é impossível. Além disso, ele reforça como se sente culpado
quando não consegue controlar certos movimentos involuntários de seu
comportamento, movimentos estes que geram qualquer incômodo a seus pais. O
sentimento de culpa por não ter controle parece ser algo que o machuca demais,
o deixando triste e com vontade de se isolar cada vez mais, a fim de não produzir
mais disso para seus pais.
Pergunta 5:
Por que você faz
coisas que não deve mesmo que já tenha sido advertido um milhão de vezes?
Nós, pessoas com
autismo, ouvimos isso o tempo todo. Eu sou constantemente repreendido por fazer
as mesmas coisas sempre. Pode parecer que fazemos por maldade ou por pirraça,
mas, juro, não é o caso. Quando somos advertidos, nos sentimos mal por mais uma
vez termos feito algo que já nos haviam avisado que era errado. Só que, quando
aparece a oportunidade, já nos esquecemos do que aconteceu na última vez e
somos levados a fazer tudo de novo. É como se algo fora de nós nos forçasse a
isso. (p.35)
Pensei
no menino andando pela escola, pensei em como aquilo poderia fazer bem para
ele. Aquele estagiário, aquela escola e seus professores respeitavam uma
particularidade e permitiam que ele pudesse ser no espaço escolar. Na época,
não entendia bem a cena. Não julguei ou coisa do tipo, simplesmente não sabia o
que pensar. Ler as palavras que Naoki Higashida emprega no livro me fizeram
construir um sentido para aquela imagem, um sentido lindo que valoriza a escola
pública.
O
livro também me levou para a segunda cena, a do estudante estagiário e o seu
possível despreparo. Sou totalmente contra a ideia de que algo possa preparar
outra pessoa para algo que ela nem mesmo sabe o que será. No caso de escola,
isso é mais imprevisível ainda. Galera, a escola é repleta de pessoas, e a
gente nunca vai saber como as pessoas são ou estão. A gente muda o tempo todo
(O Oceano no Fim do Caminho que o diga. Já disse que amo esse livro?), como
então dizer que se aquele estudante tivesse feito isso ou aquilo, não teria
dificuldades em seu primeiro dia? Que nada!
Por
outro lado, acho que a leitura de O Que Me Faz Pular pode auxiliar muito alguém
que vai estar em contato com crianças e jovens autistas. Não que ele resolva
todos os problemas – Naoki Higashida não resolve nada, apenas conta um pouco de
como seu corpo e sua cabeça funcionam –, mas é sempre bom “conversar” com
alguém que vive aquilo todo dia. Imagine que você mudou de emprego e vai
trabalhar na mesma função que sua mãe exerceu durante vinte anos. Não seria
legal perguntar para ela como foi, suas dificuldades, o que ela achava fácil e
tudo mais? É a mesma coisa! Por isso acho que a leitura de O Que Me Faz Pular
deveria fazer parte, em algum momento, das leituras de quem vai entrar em sala
com crianças autistas.
Por
fim, retomo minha aula de Libras no que toca uma diferença. Sempre tive a
impressão que, assim como o surdo é um falante de uma língua estrangeira, mesmo
sendo brasileiro, que o autista é uma pessoa com uma mente diversa,
necessidades diversas, comportamentos diversos. Nada muito diferente de todo
ser humano. Quero ver você encontrar dois iguais no mundo! Ler O Que Me Faz
Pular reforçou esse pensamento em mim. Reforçou a necessidade de escutar – com
o ouvido e com o corpo – o que a pessoa que está perto de você tem a dizer.
Escutar como um abraço, como um gesto de ter atenção e empatia. Escutar com
respeito pela diferença e pela possibilidade de cada um. Escutar lembrando que
também temos limites, fraquezas, impulsividades, e que o outro não difere muito
disso.
Pergunta 10:
Por que você não
consegue ter uma conversa normal?
Há muito tempo
venho me perguntando por que nós que temos autismo não conseguimos falar de
forma correta. Eu nunca consigo dizer o que quero de verdade. Ao contrário,
palavras que não tem nada a ver com nada escapam da minha boca. Isso costumava
me deixar bem deprimido, e eu não conseguia deixar de ter inveja dos que podem
falar sem o menor esforço. Nossos sentimentos são iguais aos de todo mundo, só
não conseguimos encontrar uma forma de expressá-los.
Não temos nem
mesmo controle sobre nosso próprio corpo. Tanto ficar quieto quanto se mover
quando nos é pedido é um desafio – é como comandar por controle remoto um robô
com defeito. Para completar, vivemos sendo repreendidos e não podemos nem nos
explicar. Eu me sentia abandonado pelo mundo inteiro.
Por favor, não nos
julgue apenas pela aparência. Não sei por que não conseguimos nos comunicar de
forma adequada. Mas não é por não queremos falar – é porque não podemos, e
sofremos por causa disso. Sozinhos, não há nada que possamos fazer quanto a
esse problema, e houve uma época em que eu imaginava a razão do Eu Que Não Fala
ter nascido. Mas, tendo começado a me comunicar por texto, agora sou capaz de
me expressar através da prancha de alfabeto e de um computador, e, por poder compartilhar o que sinto,
percebo que eu também existo neste mundo como um ser humano.
Você
consegue imaginar como seria sua vida se não pudesse falar? (p. 47-48 – grifos
meus)
O
Que Me Faz Pular foi um livro que me fez voltar para escola enquanto lia. Me
fez também sair dessa escola – a da lembrança – e voltar para meu cotidiano,
pensando que agora conheço uma parcela infinitesimal de algumas das
especificidades do autismo. Isso não me dá nenhuma vantagem ou conhecimento a
mais do que outras pessoas, mas reforça para mim a necessidade de escutar, de
ter empatia. Empatia pela diferença que precisa ser respeitada, ouvida e
incluída no mundo.
Para
além, ou aquém disso tudo, O Que Me Faz Pular me fez lembrar que o menino que
andava pela escola, com o estagiário tocando violão, também pulava no pátio.
Que
coisa mais linda!